sábado, janeiro 29, 2005

Nomear e estigmatizar

Tem-se vindo a assistir a uma conjunção de duas coisas completamente diferentes que convém separar. A necessidade de nomear e a mania humana de estigmatizar.

O ser humano é um ser linguístico, muito embora não se esgote na linguística nem tudo seja passível de ser transformado em linguagem (em especial quando se trata de sentimentos transpostos para a linguagem que recorre ao uso de vocabulário; sim, não esqueçamos que a linguagem que envolve palavras não é o único tipo de linguagem existente). Isso implica que, quando existe algo novo, ou diferente, esse algo tem que ter um nome - de contrário, seria impossível que se conseguisse ter uma conversa sobre "isso". As palavras que criamos ou que nos são dadas correspondem a conceitos. O que é um conceito? É uma espécie de "imagem mental" de algo, que a reduz aos seus elementos principais e característicos. Assim, a título de exemplo, a palavra cadeira evoca em quem lê uma imagem (i.e., um conceito) com quatro pernas, com um encosto para as costas, com um assento... De notar que todas estas palavras usadas para clarificar o conceito de cadeira são por sua vez conceitos que necessitariam de sucessiva clarificação.
Então, o que é que um conceito não é, nem pode aspirar a ser? Uma ideia completa sobre algo. As palavras não conseguem nunca definir à exaustão algo, porque tal seria ter o conhecimento absoluto dessa mesma coisa - até agora, impossível. O que se verifica actualmente é uma verdadeira fobia de nomeclaturização. Se a pessoa "A" se comporta desta ou daquela maneira e isso pode ser definido como um tipo de comportamento "X", a pessoa "A" vai-se rebelar só porque ouve dizer que tem um comportamento "X". Outro exemplo: ouve-se muito dizer "eu não sou desta nem daquela maneira, não sou isto nem aquilo, eu sou eu. Uma verdade muito interessante. Atesta: 1)que o sujeito de enunciação tem auto-consciência; 2)que essa auto consciência não é partilhada. Fora isso, não diz grande coisa, pois não? Mas é a melhor demonstração da fobia que eu mencionei.

A origem da fobia? O facto de se utilizar abusivamente os conceitos para a criação de estereótipos. Utilizam-se conceitos como classificações totais e englobantes de algo, contra a própria natureza destes. E, como a linguagem é performativa (isto é, como a linguagem age sobre a realidade, ao invés de se limitar a referênciá-la), os conceitos acabam mesmo por se transformar em estereótipos. O medo da estereotipia leva então a que as pessoas não queiram ser identificadas com o que quer que seja, impossibilitando a sua conceptualização. Utilizar um conceito não é explicar toda a coisa referida. Quando alguém usa um conceito, não se deve partir do princípio que a pessoa está a atender a uma ideia total. É claro que, por funcionarem por simplificação, os conceitos têm tendência a transformar-se em estereótipos; a diferença consta no sujeito de enunciação - no primeiro caso está-se a utilizar um conceito na impossibilidade de exprimir (ou sequer perceber) o mundo na sua total complexidade e com a consciência que essa mesma ideia é faltosa e insuficiente, sendo necessário (quando a isso a situação exige) recorrer a especificações; no segundo caso, o sujeito pensa que assim consegue transmitir toda uma ideia completa, sem necessidade de adição, e que a ideia do receptor é exactamente a mesma que ele possui. No primeiro caso, atende-se a necessidades de comunicação e restrições intelectuais humanas, no segundo opera-se uma abusiva extrapolação ilógica, completamente inaceitável.

Assim, não devemos temer a conceptualização, mas sim a utilização de estereótipos. Dessa forma podemos evitar a vacuidade de eu sou eu, verdade inegável e profunda, declaradora de singularidade, mas por isso mesmo também igualmente vazia de significado.

quarta-feira, janeiro 26, 2005

"Imagine", John Lennon

"Imagine there's no heaven,
it's easy if you try,
no hell below us,
above us only sky.
Imagine all the people
living for today.

Imagine there's no countries,
it isn't hard to do,
nothing to kill or die for,
and no religion too.
Imagine all the people
living life in peace.

You may say I'm a dreamer,
but I'm not the only one.
I hope some day you will join us
and the world will be as one.

Imagine no possessions,
I wonder if you can,
no need for greed or hunger,
a brotherhood of men.
Imagine all the people
sharing all the world.

You may say I'm a dreamer
but I'm not the only one.
I hope someday you will join us
and the world will live as one."

John Lennon

Talvez sejam demais quaisquer palavras depois desta letra. Mas eu não posso deixar de me juntar a John Lennon no seu sonho, se bem que com um desencanto que ele não tinha. Nos loucos anos 60, na época dos hippies e do "Make love, not war", era possível sonhar com um Mundo sem posses. No nosso consumista século XXI, acho-o bastante mais difícil... Mas enfim, a esperança é a última a morrer! E, tal como ele diz, "I'm not the only one"...

quinta-feira, janeiro 13, 2005

Nós já estamos fartos

"Eles já estão fartos"

Dizes que é uma miséria veres os teus próprios filhos
Transformados em vadios e drogados
O teu orgulho de pai está ferido.
Apressas-te a culpá-los, mais à sua geração,
Por não quererem alinhar na engrenagem
Que eles viram esmagar o teu pobre coração.

Eles já estão fartos de saber o que tu queres deles.
Eles já estão fartos de saber quem quer vendê-los.
Eles já estão fartos de ouvir dizer: tem que ser.
E agora eles tentam viver doutra maneira qualquer.

Faz-te imensa confusão vê-los andar pelas ruas
Com o olhar fixo em qualquer ponto do espaço
E umas maneiras tão diferentes das tuas.
Faz-te imensa confusão vê-los tristes e cansados.
Para ti, eles não passam de uns preguiçosos,
Contagiados pelas más companhias.

Eles já estão fartos de saber o que tu queres deles.
Eles já estão fartos de saber quem quer vendê-los.
Eles já estão fartos de ouvir dizer: tem que ser.
E agora, eles tentam viver doutra maneira qualquer.

Quem é que os levou a ser assim tão frios e indiferentes
Para com os pais que tanto se esforçaram
Para que eles pudessem vencer toda a gente?
Quem é que os levou a ser tão ingratos e egoístas
Para quem não olhou a sacrifícios
Para que os seus filhos dessem nas vistas?

Eles já estão fartos de saber o que tu queres deles,
Eles já estão fartos de saber quem quer vendê-los.
Eles já estão fartos de ouvir dizer: tem que ser.
E agora eles tentam viver doutra maneira qualquer.

Eles já estão fartos de saber que a Guerra existe.
Eles já estão fartos de saber que a Fome existe.
Eles já estão fartos de saber que a Família existe.
Eles já estão fartos de saber que a Igreja existe.
Eles já estão fartos de saber que o Estado existe.
Eles já estão fartos de saber o que os deixam fazer.
Eles já estão fartos de saber o que os deixam fazer.
Eles já estão fartos de saber o que os deixam fazer.

Eles já estão fartos

Jorge Palma

Prometeu

terça-feira, janeiro 11, 2005

It's up to us!

Sem-abrigo.
Quantas histórias se escondem atrás das pessoas que dormem em bancos de jardim, em vãos de escada, debaixo de arcadas, sobre um cartão, tapados com cobertores velhos e rotos? Quantos têm família, quantos tiveram casa e trabalho e acabaram por perder tudo? Há também, é certo, os que se podem chamar sem-abrigo por opção, os que escolhem esse caminho como filosofia de vida. Mas esses, infelizmente, são uma minoria...
Eu conheço um caso. Um, entre muitos. Um homem culto, que fala fluentemente espanhol, com uma bagagem literária que faria inveja a muitos “doutores” que por aí andam, como por exemplo aquele economista que por acaso chegou a Primeiro-ministro (teve que ser por acaso...) e que nem sequer sabia quantos cantos tinham Os Lusíadas... Espero que entretanto já tenha aprendido... Mas este homem, engenheiro petrolífero conceituado, tinha uma boa situação financeira. Vivia na Venezuela, era levado de helicóptero às plataformas petrolíferas. Agora, dorme nas ruas de Lisboa, pede, rouba, é toxicodependente. Mas nos seus olhos ainda brilha uma luz especial quando fala de livros. E quando o ouvimos discorrer sobre Herman Hess ou Michael Ende, sobre Prémios Nobel da Literatura, sobre as mais recentes novidades literárias, não nos lembramos que ele anda mal-vestido e que passa fome. Ficamos simplesmente presos à música das palavras dele...
Este é um caso. Só um, de entre as centenas que enchem Lisboa. Só mais uma pessoa que dorme na rua enquanto outros dormem em casas luxuosas. Uma pessoa culta e trabalhadora, que já teve prestígio e dinheiro e que perdeu tudo.
Ninguém disse que o mundo em que vivemos é justo, realmente. Mas por vezes é demasiado injusto. Será que algum dia será diferente? Será que nós, novas gerações, vamos conseguir mudar algo? Será que vamos revolucionar alguma coisa? Ou será que nos vamos simplesmente acomodar, como tantos outros antes de nós? Será que daqui a 20, 30 anos, o mundo em que vivermos será mais justo?
Não há resposta para estas perguntas. Ou talvez até haja uma: está nas nossas mãos.
It’s up to us!

A PERSPECTIVA FCON de Don Marquis

Problema:
Por que razão é errado matarem um de nós?
Qual é a propriedade que possuímos que faz com que seja errado matarem-nos?

Perspectiva FCON:
  • Temos que entender o que há de errado em matar em termos daquilo que matar nos faz. O acto de matar impõe-nos o infortúnio da morte prematura.
  • A morte prematura é um infortúnio porque priva-nos da nossa vida consciente futura.
  • Mas nem toda a vida consciente futura interessa. O infortúnio da morte prematura consiste em perdermos os bens futuros da vida consciente: aquilo que torna a vida digna de ser vivida.
  • O que torna os bens do nosso futuro bons para nós próprios? Não é desejarmos agora esses bens.
  • O que torna o nosso futuro valioso para nós próprios são aqueles aspectos do nosso futuro que iremos (ou iríamos) valorizar quando viermos (ou viéssemos) a experienciá-los, independentemente de os valorizarmos ou não agora.
  • Em geral, é errado matarem-nos porque isso nos priva de um futuro com valor. Em geral, matar um indivíduo é errado quando isso o priva de um Futuro Como O Nosso - um FCON.

Argumento FCON contra o aborto: Como o aborto implica matar fetos e os fetos têm FCON's precisamente pelas razões pelas quais as crianças e os adultos têm FCON's, é de presumir que o aborto é profundamente imoral

ou seja

  1. Se um indivíduo tem um FCON, então prima facie é errado matá-lo.
  2. Um feto humano normalmente tem um FCON.
  3. Conclusão: Normalmente é prima facie errado matar um feto humano.

[conceito de Don Marquis]

Prometeu


segunda-feira, janeiro 10, 2005

Sociedade Portuguesa de Filosofia

Num grande auxílio à sociedade portuguesa, a SPF começou a partir de hoje a organizar seminários abertos de filosofia a um ritmo mensal. O primeiro teve como tema "A ética do aborto" e foi dirigido por Pedro Galvão, da Universidade de Lisboa. Têm aqui o link para irem vendo quando e onde se realizam as sessões, sendo que o próximo tema não está ainda marcado. Aqui está um exemplo prático de como podem começar a contribuir para a saída da menoridade intelectual - participando em verdadeiros acontecimentos de "submersão" no mundo da filosofia, sem que para isso seja necessário algum conhecimento prévio ou específico.

Devo dizer que o diálogo na sessão (de duas horas) foi excelente, a interacção foi um ponto permanente e as ideias eram debatidas conforme apareciam, gerando um clima de entendimento e esclarecimento muito fértil para novas ideias e novas formas de pensar. Assuntos do quotidiano debatidos de um ponto de vista filosófico. O que melhor se pode pedir por ora?

Exporei noutra ocasião o argumento que mais se provou incontestável (em termos de argumentos lógicos) e que, por acaso - ou talvez não - pertence à facção pró-vida, com a qual me identifico.

Prometeu

quarta-feira, janeiro 05, 2005

Alternativas

Alternativas ou o pequeno desabafo
Saímos porta fora, vamos para os nossos empregos, para as nossa ocupações. Saímos das nossas ocupações e regressamos a casa. Entretanto cumprimos obrigações sociais e biológicas, agradamos a este e àquele, desagradamos a outros tantos. De tempos a tempos lá tiramos as nossas férias, vamos passear... De forma mais ou menos pontual lemos um livro, ouvimos música, amamos, fazemos sexo, votamos, acabamos por morrer.
Parece estranho, não parece? Uma vida, um parágrafo. O que é que acontecia se eu tentasse descrever outra vida? Bem... bastava copiar o mesmo parágrafo. Triste, não é? Muito.
É claro que, de vez em quando, lá aparece aquele tal Fulano que faz isto ou aquilo diferente, que tem sucesso ou que consegue agitar as coisas. Mas conseguem lembrar-se do nome de uma destas pessoas que tenha feito algo realmente importante nos últimos cinco meses? ...Foi o que me pareceu.
Podemos sempre falar em alternativas. A alternativa do PSD pode ser o PS; é claro que depois, a alternativa do PS será o PSD. Sim... alternativa... claro!... Ou então, também há a alternativa de escolher entre um emprego e outro emprego só para não ficar no desemprego.
Alternativa. As pessoas não sabem já o que isso é. Limitam-se a andar sempre dentro do mesmo redil, sujeitas às mesmas coisas, pensado que a alternativa está em escolher mais do mesmo. Em tudo: cultura, política, amores, sociedade, vida. Depois arrogam-se o direito de falar em alternativas.
Querem alternativas? As alternativas são vocês! Modifiquem aquilo que vos fizeram pensar por algo que tenham pensado por vocês mesmos. Parem de ter medo de mudar para algo desconhecido. A alternativa é levantarem-se do sofá da vida e começarem a caminhar a estrada que vos espera, empoeirada e sinuosa. A alternativa é saber que mudar é viver. A alternativa não é ler este texto, a alternativa é mudar o texto para a realidade, é saírem do estado onírico que sabe tão bem mas faz tão mal.

Transformem-se na alternativa.
Prometeu

Testes

Testes.
De inteligência, de personalidade.
Teorias.
As mais variadas.
Quantas injustiças já se praticaram em seu nome?
Quando surgiram os testes de inteligência, estes foram aplicados maciçamente com consequências... enfim, no mínimo curiosas. A Alemanha Nazi, por exemplo, “descobriu” que os judeus eram uma raça inferior. Os EUA, principais impulsionadores destes testes, “descobriram” que os imigrantes, bem como os afro-americanos, eram menos inteligentes, capazes de se integrar apenas em profissões manuais. Aliás, é de notar que a diferença dos valores de QI entre os americanos brancos e os afro-americanos chegava a atingir 15 pontos!
Há vários casos que ilustram bem isto... Psicólogos afro-americanos que se dedicaram a estudar estes assuntos tinham tido resultados tão baixos nos testes que a única carreira que lhes foi indicada como apropriada seria a construção civil... E o pior é que isto ainda hoje se repete! Tenho uma amiga a quem, nos testes de orientação vocacional no 9º ano, disseram que o melhor seria seguir um curso técnico-profissional, já que ela tinha resultados negativos em todas as áreas... Seria portanto uma nulidade... O curioso é que ela hoje está no 11º ano, no agrupamento considerado como “mais difícil” (científico-natural), sem chumbar e a aguentar-se bem. Felizmente, a rapariga que eu vi desfeita em lágrimas está a confirmar (uma vez mais...) que esses testes não são assim tão fiáveis...
As teorias da personalidade também são interessantes... Sempre esta mania da sociedade de nos catalogar, de nos estereotipar, de nos estandardizar, de nos etiquetar! Não vou dizer que não acho estas teorias interessantes, porque as acho. Sempre as achei, e agora que as estudo ainda as acho mais. Mas não é por isso, não é por ir pertencer ao métier, que vou deixar de condenar os exageros! É que se eu as acho simplesmente interessantes e curiosas, há quem as leve muito a sério...
Cada um de nós tem a sua personalidade, é certo. E é claro que nem todas as personalidades são iguais nem reagem da mesma forma perante diferentes situações, e nós devemos estar cientes disso nas nossas inter-relações. Mas sem exageros! Soube há pouco de dois casos passados no Japão que são, no mínimo, ridículos. Referem-se a uma teoria da personalidade relativamente recente, baseada nos grupos sanguíneos. (Já sabem, perguntem a uma pessoa o seu grupo sanguíneo e ficarão a conhecê-la!) seguindo essa teoria, foram seleccionados os candidatos a um emprego de acordo com o seu grupo sanguíneo. Não estou a brincar, não. E há mais. Em algumas escolas, existem até diferentes programas educacionais consoante o grupo sanguíneo a que as crianças pertencem! Ou seja, as crianças que tenham sangue AB aprendem de uma forma diferente das que tenham sangue O. Eu fico sem reacção quando oiço isto.
Estes testes têm, sem dúvida, utilidade. Mas devem ser encarados apenas como informativos, não como normativos. Por mais fiáveis que os resultados possam ser, não justificam nunca o tipo de discriminação que acima referi. Por favor, um pouco de bom senso!