Nomear e estigmatizar
Tem-se vindo a assistir a uma conjunção de duas coisas completamente diferentes que convém separar. A necessidade de nomear e a mania humana de estigmatizar.
O ser humano é um ser linguístico, muito embora não se esgote na linguística nem tudo seja passível de ser transformado em linguagem (em especial quando se trata de sentimentos transpostos para a linguagem que recorre ao uso de vocabulário; sim, não esqueçamos que a linguagem que envolve palavras não é o único tipo de linguagem existente). Isso implica que, quando existe algo novo, ou diferente, esse algo tem que ter um nome - de contrário, seria impossível que se conseguisse ter uma conversa sobre "isso". As palavras que criamos ou que nos são dadas correspondem a conceitos. O que é um conceito? É uma espécie de "imagem mental" de algo, que a reduz aos seus elementos principais e característicos. Assim, a título de exemplo, a palavra cadeira evoca em quem lê uma imagem (i.e., um conceito) com quatro pernas, com um encosto para as costas, com um assento... De notar que todas estas palavras usadas para clarificar o conceito de cadeira são por sua vez conceitos que necessitariam de sucessiva clarificação.
Então, o que é que um conceito não é, nem pode aspirar a ser? Uma ideia completa sobre algo. As palavras não conseguem nunca definir à exaustão algo, porque tal seria ter o conhecimento absoluto dessa mesma coisa - até agora, impossível. O que se verifica actualmente é uma verdadeira fobia de nomeclaturização. Se a pessoa "A" se comporta desta ou daquela maneira e isso pode ser definido como um tipo de comportamento "X", a pessoa "A" vai-se rebelar só porque ouve dizer que tem um comportamento "X". Outro exemplo: ouve-se muito dizer "eu não sou desta nem daquela maneira, não sou isto nem aquilo, eu sou eu. Uma verdade muito interessante. Atesta: 1)que o sujeito de enunciação tem auto-consciência; 2)que essa auto consciência não é partilhada. Fora isso, não diz grande coisa, pois não? Mas é a melhor demonstração da fobia que eu mencionei.
A origem da fobia? O facto de se utilizar abusivamente os conceitos para a criação de estereótipos. Utilizam-se conceitos como classificações totais e englobantes de algo, contra a própria natureza destes. E, como a linguagem é performativa (isto é, como a linguagem age sobre a realidade, ao invés de se limitar a referênciá-la), os conceitos acabam mesmo por se transformar em estereótipos. O medo da estereotipia leva então a que as pessoas não queiram ser identificadas com o que quer que seja, impossibilitando a sua conceptualização. Utilizar um conceito não é explicar toda a coisa referida. Quando alguém usa um conceito, não se deve partir do princípio que a pessoa está a atender a uma ideia total. É claro que, por funcionarem por simplificação, os conceitos têm tendência a transformar-se em estereótipos; a diferença consta no sujeito de enunciação - no primeiro caso está-se a utilizar um conceito na impossibilidade de exprimir (ou sequer perceber) o mundo na sua total complexidade e com a consciência que essa mesma ideia é faltosa e insuficiente, sendo necessário (quando a isso a situação exige) recorrer a especificações; no segundo caso, o sujeito pensa que assim consegue transmitir toda uma ideia completa, sem necessidade de adição, e que a ideia do receptor é exactamente a mesma que ele possui. No primeiro caso, atende-se a necessidades de comunicação e restrições intelectuais humanas, no segundo opera-se uma abusiva extrapolação ilógica, completamente inaceitável.
Assim, não devemos temer a conceptualização, mas sim a utilização de estereótipos. Dessa forma podemos evitar a vacuidade de eu sou eu, verdade inegável e profunda, declaradora de singularidade, mas por isso mesmo também igualmente vazia de significado.