terça-feira, janeiro 11, 2005

A PERSPECTIVA FCON de Don Marquis

Problema:
Por que razão é errado matarem um de nós?
Qual é a propriedade que possuímos que faz com que seja errado matarem-nos?

Perspectiva FCON:
  • Temos que entender o que há de errado em matar em termos daquilo que matar nos faz. O acto de matar impõe-nos o infortúnio da morte prematura.
  • A morte prematura é um infortúnio porque priva-nos da nossa vida consciente futura.
  • Mas nem toda a vida consciente futura interessa. O infortúnio da morte prematura consiste em perdermos os bens futuros da vida consciente: aquilo que torna a vida digna de ser vivida.
  • O que torna os bens do nosso futuro bons para nós próprios? Não é desejarmos agora esses bens.
  • O que torna o nosso futuro valioso para nós próprios são aqueles aspectos do nosso futuro que iremos (ou iríamos) valorizar quando viermos (ou viéssemos) a experienciá-los, independentemente de os valorizarmos ou não agora.
  • Em geral, é errado matarem-nos porque isso nos priva de um futuro com valor. Em geral, matar um indivíduo é errado quando isso o priva de um Futuro Como O Nosso - um FCON.

Argumento FCON contra o aborto: Como o aborto implica matar fetos e os fetos têm FCON's precisamente pelas razões pelas quais as crianças e os adultos têm FCON's, é de presumir que o aborto é profundamente imoral

ou seja

  1. Se um indivíduo tem um FCON, então prima facie é errado matá-lo.
  2. Um feto humano normalmente tem um FCON.
  3. Conclusão: Normalmente é prima facie errado matar um feto humano.

[conceito de Don Marquis]

Prometeu


11 Comentários:

Anonymous Anónimo disse...

Genericamente fica um sentido para o Não à morte. Pelo respeito pela vida humana, pela singularidade da pessoa e pela razão angular de uma comunidade, o respeito pelo o “Outro”.
Há algumas questões que a sua análise me sugere bem como alguma preocupação. O que torna para si a vida indigna de ser vivida? Quem julga essa indignidade ? Que prática social advém dessa indignidade ? O que é um “futuro com valor”? O que são esses bens que se projectam no futuro e aparentam justificar uma vida? Quem decide o que é o valor ?
Que abrangência tem essa definição de FCON?

PS – descobri o seu blog através do Jorge Dias blog Filosofia com afectividade

Lagrima.blogs.sapo.pt

1:07 da tarde  
Blogger Daniel Cardoso disse...

A ideia de Don Marquis não refere o sentido de "dignidade" ou "indignidade". A beleza deste conceito é o seu alto grau de racionalidade, que o torna virtualmente inabalável. Fala, porém, do valor da vida por causa do FCON.

Respondendo às últimas questões, ninguém decide realmente o valor. É o sujeito que atribui ou atribuirá (ou atribuiría) valor às suas experiências, à sua vida, ao seu FCON. Os valores não se projectam no futuro, simplesmente se dá ao sujeito (através do não-aborto) a possibilidade de vir a desfrutar das suas experiências pessoais. Afinal de contas, é difícil pensar em alguém que não dá valor a ABSOLUTAMENTE nada, pelo que basta que o sujeito dê valor a algo para que o FCON já esteja a ser de certa forma realizado.

Porém, esta não é uma posição radicalista (e daí o uso de "normalmente") - em casos de anacefalia, por exemplo, não seria moralmente incorrecto o aborto, já que o indivíduo não tem um FCON. O mesmo com outras malformações congénitas que impediriam o sujeito de valorizar as suas experiências futuras e portanto de ter um FCON.

Espero ter respondido às questões. Entretanto, aproveito para dizer que o blog Filosofia com Afectividade foi também onde descobri o site da SPA e que vai já já para os nossos blogs recomendados.

Prometeu

1:59 da tarde  
Anonymous Anónimo disse...

Subsistem algumas duvidas. A questão é (apenas) de consistência da argumentação. Sobre a questão central do aborto a nossa opinião é em potência idêntica e tempo para defende-la não vai faltar...
Se surgir oportunidade “in loco” conversaremos sobre questões como o “...infortúnio da morte prematura...”, “...nem toda a vida consciente futura interessa...”, “...a vida digna de ser vivida...”, “...é errado matarem-nos porque isso nos priva de um futuro com valor...”, “...Em geral matar um indivíduo é errado quando isso o priva de um Futuro como o Nosso – um FCON....” Há implícito nesta argumentação uma avaliação do “outro” que se consuma num julgamento e é o que se coloca nesse contexto que pode ser permissivo a uma interpretação fraudulenta das intenções do autor ou mesmo abusiva por parte deste. Remato-lhe partindo da regra, a Vida existe a montante de qualquer avaliação e o primeiro Bem do qual toda a humanidade deve ser fiel depositária é a inteira liberdade da Vida. Após essa base de civilização partimos para enquadrar a excepção, no caso o aborto, dentro da abrangência do relacionamento humano numa base ética.
Pego no seu assertivo texto sobre a “Alternativa ou pequeno desabafo” para rematar este comentário, a alternativa começa em nós e passa pelo outro o que temos assistido é a negação do nós e com isso a condenação do eu e o suportar social do “outro”.
Cumprimentos
Lagrima.blogs.sapo.pt

9:27 da manhã  
Blogger Daniel Cardoso disse...

Na verdade, todos os principais argumentos pró-vida baseados na "santidade" da Vida que foram apresentados na sessão têm várias lacunas. Por isso este autor sentiu a necessidade de se apoiar em algo que não apelasse a um suposto valor intrínseco ou a priori da Vida.
Em relação ao julgamento de que fala, penso que se está a estabelecer uma qualquer confusão. O FCON parte simplesmente da possibilidade que o "eu" dá ao "outro" de ter aquilo a que o "eu" tem direito - o único elemento tomado a priori é apenas a suposição que o "outro" vai dar valor a algo. A valorização que o "outro" faz/fará da sua própria vida e dos elementos que a constituem é que transforma um futuro num FCON. Há aqui simplesmente a admissão da potencialidade do sujeito de vir a apreciar seja o que for, seja em que momento for. O aborto vai impedi-lo disso, daí o infortúnio, o infortúnio de o sujeito ser privado de um FCON.
Entretanto quaisquer possíveis erros lógicos de argumentação têm que ser dirigidos ao silogismo, porque o resto é apenas a explicação dos conceitos. Ou se discorda da primeira ou da segunda premissa, o que não me parece que seja o caso.

Qualquer discussão in loco seria perfeitamente bem-vinda da minha parte. O meu contacto está disponível através do meu perfil para qualquer efeito.

Prometeu

1:13 da tarde  
Anonymous Anónimo disse...

Como o Prometeu sugere, “quaisquer possíveis erros lógicos de argumentação têm que ser dirigidos ao silogismo”. Ora, a meu ver, as premissas deste pretenso silogismo estão estupidamente erradas.

Tomemos a premissa de que desde que o feto PUDESSE ter no seu futuro algo a que PUDESSE dar valor… Se esse é o motivo pelo qual ele deve viver, então é uma condição universal! Não há nenhum ser vivo consciente que numa vida inteira nunca dê valor a nada, mas o facto de ter bons momentos na sua vida não leva a que ela seja uma vida boa.

Quanto a ter um Futuro Como O Nosso, poucas dessas crianças o irão ter. É só pensarem um pouco, as mulheres que querem abortar não o fazem por desporto ou por crueldade, fazem-no ou por não terem condições financeiras para sustentar um filho, ou porque são demasiado jovens, inexperientes e não aguentam nem querem essa responsabilidade, ou porque foi um acidente, etc, etc. Não são animais sem escrúpulos.

Uma criança que nasça nestas condições nunca terá um FCON. Não será amada como qualquer um de nós, não será compreendida, não será aceite. E não só não terá uma vida boa, como provavelmente fará com que a vida da mãe não seja boa. Esta, das duas uma: ou assume um compromisso que não deseja, que é o de cuidar do filho, ou abandona-o pura e simplesmente. Em qualquer dos casos, o resultado não será positivo nem para a criança nem para a mãe; no primeiro porque a criança não será amada e cuidada como seria uma criança “como nós” e isso vai-se reflectir na sua vida. Da mesma forma, a mãe verá a sua vida castrada por algo que nunca desejou – ela não quer aquele filho e agora tem de viver em função dele – porque digamos o que dissermos, ter um filho, assumir a responsabilidade de criá-lo (mesmo que seja sem amor), significa sempre privarmo-nos de muitas coisas, fazer muitos sacrifícios, passar a viver em prol do outro - representa sempre uma perda de liberdade, ainda que a possamos achar positiva, quando é uma decisão deliberada; no segundo caso (abandonar o filho), isto não é bom para a criança pelas razões óbvias, crescerá numa instituição (com sorte) sem pais e sem carinho e sentirá sempre que não foi querida e amada o que terá repercussões pela sua vida fora. Por outro lado, a mãe, ainda que não abdique da sua vida e liberdade, será para sempre perseguida pelo remorso das suas acções.

Vale a pena que a criança viva nestas condições? Chamam a isto um FCON?

Este argumento é, a meu ver, totalmente desprovido de sentido.

Para mais, legalizar o aborto não significa incentivá-lo. Recorrer ao aborto é sempre uma decisão desesperada, nunca é feita de ânimo leve e quem opta por fazê-lo por não ver mesmo mais nenhuma solução, falo-á quer seja legal ou não. Legalizar o aborto significa apenas dar condições para que essas pessoas o possam fazer com segurança, sem o risco de contraírem infecções ou mesmo de morrerem.

Mais hipócrita é a posição da igreja católica que repudia veemente o aborto e que ao mesmo tempo condena a utilização de contraceptivos. As pessoas são então obrigadas a ter filhos mesmo que não o queiram? O sexo é apenas reprodução, não é prazer, não é expressão de amor?

E o feto? É um ser humano só porque respira e tem braços e pernas? Ser humano é antes de mais ter consciência de si próprio e quanto a isso não vejo grande diferença entre um feto e o frango assado que como ali na churrasqueira. E para ser franco, não vejo muita gente a preocupar-se com a vida do frango…

É a minha opinião, na esperança vã que se faça um novo referendo, e defendendo acerrimamente que os homens deveriam ser proibidos de nele votar. São as mulheres que passam por isto, cabe a elas decidir…

Némesis

5:47 da manhã  
Blogger Daniel Cardoso disse...

Némesis, como deves notar, neste ponto as diferenças entre a tua opinião e a minha são completamente diferentes, pelo que peço que me deixes pôr em causa um par de afirmações que fizeste.

Em primeiro lugar, lamento informar que te contradizes; repara:

«Tomemos a premissa de que desde que o feto PUDESSE ter no seu futuro algo a que PUDESSE dar valor… Se esse é o motivo pelo qual ele deve viver, então é uma condição universal! Não há nenhum ser vivo consciente que numa vida inteira nunca dê valor a nada, mas o facto de ter bons momentos na sua vida não leva a que ela seja uma vida boa.»

Tal como dizes, é de facto uma "condição universal"! Ao admitires isto, estás a validar aquilo que queres tão acerrimamente contrariar.

Em segundo lugar, lamento informar que não tens poder para fazer as seguintes considerações completamente apriorísticas e especulativas:

«Uma criança que nasça nestas condições nunca terá um FCON. Não será amada como qualquer um de nós, não será compreendida, não será aceite.»

Se assim fosse, então ninguém de uma condição social inferior poderia ter sucesso ou uma vida que considerasse minimanente satisfatória. Mais importante ainda do que isso, se juntarmos o que referi anteriormente a isto, temos que ver que é a própria pessoa a decidir sobre se o seu futuro é um FCON, nós não nos podemos arrogar o direito de adivinhar E generalizar o futuro de cada um dos indivíduos e o valor que os mesmos lhe vão dar.

Terceiro ponto: a confusão que se faz entre um ser humano (i.e. homo sapiens sapiens) e um sujeito de acção ética:

«E o feto? É um ser humano só porque respira e tem braços e pernas? Ser humano é antes de mais ter consciência de si próprio e quanto a isso não vejo grande diferença entre um feto e o frango assado que como ali na churrasqueira. »

Como talvez não tenha ficado completamente compreendido, deve-se abominar o aborto e o assassinato em geral pelo simples facto de que a entidade em desenvolvimento vir a ter um FCON, não pelo seu estatuto intrínseco de sujeito auto-reflexivo, ou mesmo pelo facto de pertencer à mesma raça que nós (já que isso constituiria especismo). Combinando isto com o ponto primeiro, vemos que está tudo dito.

Quarto e último ponto:

«É a minha opinião, na esperança vã que se faça um novo referendo, e defendendo acerrimamente que os homens deveriam ser proibidos de nele votar. São as mulheres que passam por isto, cabe a elas decidir…»

Para além de isto ser completamente anti-democrático, sexista e reducionista, há que ver que a ênfase não se deve colocar na mulher, mas sim na entidade em desenvolvimento à qual vai ser negada a HIPÓTESE de ter um FCON.

É claro que podemos todos aprender uns com os outros, daí os Neo-Illuminati.

Prometeu

5:41 da tarde  
Anonymous Anónimo disse...

Prometeu,

Como já deu para constatar temos opiniões radicalmente opostas face a esta questão e ainda que uma troca de argumentos seja saudável, ela só servirá provavelmente para fortalecer os nossos próprios pontos de vista, uma vez que nem eu nem tu estamos dispostos a mudar de opinião, pelo que esta discussão não vai, quanto a mim, levar a lado nenhum.

Quando afirmas que eu me contradigo ao discordar do FCON e ao mesmo tempo dizer que ele é uma condição universal, não me estou a contradizer, só estou a salientar como, na minha opinião, o argumento está mal colocado. Estou simplesmente a dizer que é pouco sensato dizer que uma criança tem um FCON pelo simples facto de poder vir a dar valor alguma coisa. O poder dar valor a alguma coisa é uma condição universal, mas isso não é sinónimo de ter um futuro como o nosso! Espero que me tenha feito entender melhor.

“Em segundo lugar, lamento informar que não tens poder para fazer as seguintes considerações completamente apriorísticas e especulativas: «Uma criança que nasça nestas condições nunca terá um FCON. Não será amada como qualquer um de nós, não será compreendida, não será aceite.»”

Segundo este comentário, eu não tenho poder para dizer que a criança nunca terá um FCON, no entanto, o silogismo tem o poder para dizer que um feto humano tem normalmente um FCON. Não percebo. O meu pressuposto é especulação, mas o oposto dele é válido! Não é também apriorístico e especulativo dizer que normalmente a criança tem um FCON?? Não está também Don Marquis a partir do princípio que uma criança destas tem um FCON?

Pois bem, eu parto precisamente do princípio oposto e posso fundamentá-lo.

“Se assim fosse, então ninguém de uma condição social inferior poderia ter sucesso ou uma vida que considerasse minimanente satisfatória.”

Voltaste a interpretar-me mal. Eu nunca afirmei que a criança não poderia ter um FCON por ter uma condição social inferior, mas sim que a criança poderia não ser desejada, por exemplo pelo facto da mãe ter uma condição social inferior. É apenas um motivo entre muitos outros possíveis. E não podes refutar nem dizer que estou a especular quando afirmo que a criança não é desejada – se o fosse, a mãe não queria certamente abortar.

Estando isto esclarecido, poderias ainda manter o argumento de que se assim fosse, uma criança não desejada nunca teria sucesso ou uma vida minimamente satisfatória. Pois bem, respondo a isso como don Marquis o fez:

Ele diz que normalmente o feto tem um FCON.
Eu digo que normalmente uma criança não desejada não tem um FCON, ou seja, pode haver excepções, mas serão (como o próprio nome indica) raras.

“Mais importante ainda do que isso, se juntarmos o que referi anteriormente a isto, temos que ver que é a própria pessoa a decidir sobre se o seu futuro é um FCON, nós não nos podemos arrogar o direito de adivinhar E generalizar o futuro de cada um dos indivíduos e o valor que os mesmos lhe vão dar.”

Quanto a arrogar, adivinhar e generalizar, tanto a minha perspectiva como a de don Marquis o fazem, com a única diferença de que partimos de pressupostos opostos.

Relativamente ao facto de ter de ser a própria pessoa a ter de decidir se o seu futuro é ou não um FCON, poucos seriam aqueles que diriam que “mais valia não ter nascido”, mas isso é porque todos os seres humanos de uma forma geral, prezam as suas vidas.

Recapitulando a minha visão:
- Uma mãe que quer abortar não deseja ter um filho;
- Um filho não desejado de uma forma geral não tem um ambiente familiar “como o nosso”, não tem uma educação “como a nossa” e consequentemente, sendo a infância uma parte fundamental da vida cuja vivência tem profundas repercussões no futuro, não tem, geralmente um FCON;
- Por não ter um FCON não quer dizer que não tenha momentos de felicidade nem quer dizer que não preza a sua vida.

Pelo que na minha perspectiva o próprio conceito de FCON de don Marquis está errado.

OK, acabei de chegar ao que tu querias. Acabei de dizer que, apesar de tudo, a pessoa viva preza a vida e que portanto, pela tua perspectiva, não temos o direito de a tirar.

É aqui que chegamos ao ponto crucial da questão.

A minha pergunta é: há vidas que valem mais do que as outras?

Penso que, à priori, concordas comigo que não.

Pois bem, o problema é o seguinte: inerente ao aborto está uma muito difícil e obrigatória opção. A mulher que considera fazê-lo tem de tomar uma decisão muito mais profunda do que parece. Ela não tem simplesmente de optar entre a vida e a morte do feto.

Tem sim, de optar entre a sua vida e a vida do feto.

Isto porque, se ela não deseja o filho, o seu nascimento vai impedi-la de levar a vida que quis – penso que isto é irrefutável. Ainda que ela se possa adaptar à ideia de ter um filho, conformar-se com essa realidade, ao decidir tê-lo quando não o quer, estará a anular-se em função dele. Estará a reprimir os seus verdadeiros sentimentos e desejos para “satisfazer” os da criança. Em resumo, está a abdicar da sua vida (que deve aqui ser compreendida como a vida que ela gostaria de ter) para que a criança possa ter a dela.

Ao abortar, pelo contrário, está a ser coerente com aquilo que quer e sente, está a optar pela sua vida, mas em contrapartida estará a impedir a do feto.

Agora a questão não pode ser contornada. Temos de decidir uma destas duas vidas. Por muito injusto que isso seja, temos de “salvar” uma e “anular” a outra.
A perspectiva que se autodenomina de “pró-vida” não é como o nome sugere a favor da vida. É sim a favor de uma vida em detrimento de outra. Mas porque é que há-de a vida do feto ser prioritária? Não deviam todas as vidas ser iguais?

Tudo bem. Podes argumentar: então e porque é que há-de ser a vida da mãe a prioritária?

Bem, a minha opinião neste caso é muito simples.

Imagina que eu podia, se assim quisesse, dar-te um milhão de euros. Imagina que eu tos dava de livre vontade e depois, passados, digamos, vinte anos, os pedia de volta. Seria justo? Penso que não.

Mas se eu nunca chegasse a dar-tos, poderias acusar-me de tos ter tirado?

Tal coisa não faria sentido, da mesma maneira que não faz sentido dizer que ao matar o feto lhe estamos a tirar alguma coisa. A ele não lhes estamos a tirar nada porque ele não chegou a ter nada.

Pelo contrário, à mãe estaremos a tirar uma vida que ela já tinha e que já escolheu.

Se temos de decidir entre uma das duas vidas, que seja aquela que já existe, que já está começada, que já é concreta!

É este o meu argumento.

Voltando às críticas que fazes ao meu texto:

“«É a minha opinião, na esperança vã que se faça um novo referendo, e defendendo acerrimamente que os homens deveriam ser proibidos de nele votar. São as mulheres que passam por isto, cabe a elas decidir…»

Para além de isto ser completamente anti-democrático, sexista e reducionista, há que ver que a ênfase não se deve colocar na mulher, mas sim na entidade em desenvolvimento à qual vai ser negada a HIPÓTESE de ter um FCON.”

Em primeiro lugar, por tudo aquilo que já disse, não vejo porque se há-de dar ênfase ao feto e não há mulher. Isso é estar a dizer que a vida do feto é mais importante do que a da mãe, afirmação com que discordo em absoluto.

Quanto à HIPÓTESE que vai ser negada ao feto, também o seria à mãe na situação oposta. E não é a hipótese de ter um FCON, que é um conceito que como já expliquei, não concordo. É a hipótese de ter a vida que se quer, que é sempre negada, ou à criança, ou à mãe.

Em segundo lugar, restringir o voto da legislação do aborto às mulheres não tem nada de sexista nem de reducionista, é apenas pôr a decisão nas mãos de quem as tem de tomar.

Imagina que queres comprar um carro. O que achas mais adequado: tu escolheres o carro que queres comprar, ou fazer-se uma votação entre todas as pessoas que estão no stand no momento da compra e o carro que tiver mais votos é o que tu compras?

A situação do aborto é totalmente análoga. Que direito têm os homens de opinar sobre uma decisão que cabe sempre à mulher e que na esmagadora maioria dos casos cabe única e exclusivamente à mulher?

Não esquecer que não estamos a decidir O aborto, mas sim a sua legalização, que como já referi, não é, a meu ver, um incentivo à sua prática.

Antevendo um hipotético argumento que se possa apresentar:

A mulher engravidou, a culpa é dela, fosse mais responsável, agora que arque com as consequências.

Odeio clichés mas aqui não tenho outra hipótese se não usar o já demasiado batido: “Errar é humano.”

Porque é! Todos erramos! Devemos pagar por um erro destes pelo resto das nossas vidas?

Não sei até que ponto, Prometeu, estás em contacto com a realidade do aborto, mas eu posso dizer-te que estou o suficiente para afirmar isto sem qualquer especulação (uma vez que falo de casos reais que ocorreram com pessoas que me são próximas – várias pessoas, devo salientar): uma gravidez indesejada é na maior parte das vezes, não uma consequência da irresponsabilidade, mas apenas do infortúnio ou da ignorância.

Estes dois exemplos são reais e referentes a pessoas que conheço e como eles há concerteza muitos mais:

- Um casal amigo tinha relações sexuais há mais de um ano. Nos primeiros meses utilizaram preservativo, mas depois ela começou a tomar a pílula e deixaram de o usar – isto não foi irresponsabilidade, o próprio médico ginecologista referiu que a utilização de preservativo era redundante uma vez que só havia um parceiro sexual e nenhum dos dois tinha doenças sexualmente transmissíveis. Descansados da vida continuaram a levar uma vida sexual normal. A rapariga esteve uns tempos doente e teve de tomar uns comprimidos. Semanas depois apercebe-se que está grávida. Os comprimidos tinham anulado o efeito da pílula. O choque inicial foi imenso. Ele tinha 19 anos, ela 20. No princípio das suas vidas e já com um fardo destes nas mãos…

- (esta história remonta aos anos 70) Ela tinha relações sexuais sem preservativo. Também não tomava pílula. Nenhum método contraceptivo de todo. Quando não lhe apareceu a menstruação, em vez de preocupada ficou contente, menos essa chatice. (!!!) Só descobriu que estava grávida quando o feto já estava bastante desenvolvido. Como não queria o filho abortou. O mais incrível é que voltou a cometer o mesmo erro e voltou a abortar. Ninguém lhe foi capaz de explicar o que era a contracepção.

Estes dois exemplos ilustram como a irresponsabilidade não é a responsável pelo aborto, mas na maior parte das vezes o infortúnio e a ignorância. Devem estas pessoas pagar pelo seu erro? São apenas vítimas, a meu ver.

Bem, há quem os queira pintar como assassinos. Para mim não pode ser assassinato porque continuo a insistir que um feto ainda não é um ser humano e o facto de aspirar a ser, só salienta a minha ideia de que devemos dar prioridade ao que já é e não àquilo que ainda vai ser.

Uma última palavra dirigida a ti, Prometeu. Condenas e repudias o aborto.

As mulheres que o queriam ter feito e que não o fazem, como o já referi, acabam realmente por habituar-se à vida com o seu filho, por conformar-se com ela. Defendes que deve ser esta a posição a tomar, certo?

Mas hábito e conformismo não são as ideias que tanto procuras combater?
Acusas-me de incoerência. Quem está a ser incoerente agora?

Némesis

P.S. – Como referi logo no princípio do texto, somos duas pessoas que não estão dispostas a mudar de opinião. Penso que com este comentário (e desculpem-me pela sua extensão) concluo aquilo que tenho a dizer sobre este assunto. És livre de voltar a apontar todas as falhas da minha argumentação nesta resposta, Prometeu, aliás incentivo-te a isso. Mas por mim, penso que já disse o que tinha a dizer e nada mais tenciono acrescentar.

Aproveito para dizer que não respondi mais cedo porque estive em exames e que agora vou passar um mês de férias ao Algarve onde não tenho net, pelo que não devo comentar nos próximos tempos. Terei muito gosto em fazê-lo enquanto aceitarem a minha opinião. Prometeu, penso que a tua crítica não foi muito construtiva, com as tuas repetidas recorrências a “lamento informar-te mas…”. Não há necessidade de ser cínico. Estamos apenas a trocar opiniões. Não queiras ser detentor da verdade, porque nenhum de nós é…

Fiquem bem!

6:17 da manhã  
Blogger Daniel Cardoso disse...

Némesis,
Em primeiro lugar, deixa-me expressar alegria porque pela primeira ou segunda vez alguém faz um comentário digno de ser realmente lido e sobre o qual se pode ponderar. Aliás, caso não tenhas reparado, estendi-te o convite de ingressares no nosso grupo, incentivado pela Nocturna, que ambos conhecemos bem. Eu sei que isto pode parecer discurso polido, mas não o é.

Entretanto, deixa-me esclarecer alguns pontos, já que a tal me incentivas. Segundo afirmas, tanto Don Marquis como tu partem de pressupostos. A questão aqui é que Don Marquis parte de um pressuposto empiricamente confirmável; o mesmo não se pode dizer do teu. Quando dizes «poucos seriam aqueles que diriam que “mais valia não ter nascido”, mas isso é porque todos os seres humanos de uma forma geral, prezam as suas vidas», estás a confirmar o FCON, porque é precisamente esse apreço pela vida (que tu confirmas existir generalizadamente) que garante um FCON, aliás, essa é a essência do FCON. Daí o facto de considerar a tua pressuposição demasiado desviada da realidade. Mas a isto já tinhas chegado também.

Afirmas que uma vida não vale nunca mais do que a outra, que não se pode escolher. Obviamente, a menos que tenhamos que enfrentar casos extremos, tal escolha é impossível: a priori, como referes tão bem, as vidas têm valores iguais. Porém, esqueces que o filho só afecta a vida da mãe em certos casos: existem instituições de assistência social e outros mecanismos de apoio que servem como alternativas reais a essa "vida desperdiçada" da mãe. Ao invés de apostar na despenalização do aborto, dever-se-ia melhorar esses serviços: nem haveria tanto aborto, nem tantas mães presas a filhos que não queriam. Porém, é aqui que a ética toca a política, pelo que não me alongarei mais sobre isto.

Em relação ao voto, lamento ter de discordar completamente: o aborto é uma questão ética acima de qualquer outra coisa, pelo que tanto homens como mulheres têm o poder e o discernimento de decidir sobre a questão. Aliás, a ser tomada semelhante decisão, a situação "ideal" será que ela seja tomada em casal, não unilateralmente, como decerto concordas.

Conheço também bem de perto dois casos de aborto, muito de perto. Num deles, a pessoa envolvida tinha 16 anos, no outro 21. A primeira ia morrendo por ter abortado. Ambos casos de negligência contraceptiva básica. Não passo a vida a recriminá-las e sempre as apoiei psicologicamente na altura, mas mostrando sempre o meu desacordo com a questão. Afinal de contas, não quero que me pensem um monstro sem sentimentos: tenho empatia para com a situação, o que não implica que possa concordar com ela.

Ao dizeres também que o feto não teve nada ainda e que a mãe já tem, estás a ser coerente com as tuas afirmações; porém, seguindo o argumento FCON, é fácil notar que tanto feto como mãe têm um FCON, pelo que a questão é anulada.

Em termos de conformismo, penso que o primeiro ponto que referi consegue responder à questão. Entretanto gostaria que continuasses a comentar sempre que queiras.

Prometeu

3:47 da tarde  
Anonymous Anónimo disse...

Apenas alguns últimos apontamentos (espero eu, mas como tu insistes tanto em ter a última palavra, não sei – não estou a criticar, atenção!):

Realmente a minha premissa não é empiricamente confirmável, apercebi-me disso quando estava a escrever o texto e previ logo que seria uma das falhas que havias de apontar – a minha premissa é efectivamente especulativa. Mas como tu próprio te apercebeste, essa não era a essência do meu argumento. Ainda assim, não concordo que a premissa esteja desviada da realidade, continuo a dizer que as crianças em questão não têm um FCON pelo menos no sentido que eu atribuo a tal expressão (porque para mim FCON não é apenas dar valor à vida).

Como realmente não estamos aqui a analisar a minha perspectiva do FCON, mas sim a de Don Marquis, esta argumentação sobre a premissa não faz particular sentido, como realmente puseste em evidência, uma vez que estive a desconstruir o argumento segundo o meu conceito de FCON e não segundo o conceito que lhe foi atribuído por Don Marquis.

“Porém, esqueces que o filho só afecta a vida da mãe em certos casos: existem instituições de assistência social e outros mecanismos de apoio que servem como alternativas reais a essa "vida desperdiçada" da mãe.”

Discordo absolutamente com esta afirmação e já a tinha discutido anteriormente. Por muitas que sejam as melhorias nos serviços destas instituições eles nunca teriam a capacidade de substituir uma mãe, por tudo aquilo que esta representa e mesmo que o fizessem isso nunca deixaria de afectar a vida da mãe – já tinha abordado esta questão quando falei num dos anteriores comentários sobre a situação em que a mãe tem o filho mas não se quer responsabilizar por ele e como tal “abandona-o” – uma vez que entregá-lo a uma instituição não é muito diferente de abandonar.

Como também já discuti, uma criança que cresça numa instituição não terá de uma forma geral uma “vida como a nossa”, mas não quero estar a voltar a essa questão.

Em relação ao voto, tive o cuidado no meu comentário de referir:

“Não esquecer que não estamos a decidir O aborto, mas sim a sua legalização, que como já referi, não é, a meu ver, um incentivo à sua prática.”

Não acho que “o aborto” seja uma questão ética ainda que concorde que deve ser decidido pelo casal se o homem estiver presente na relação. De qualquer forma não é isso que está em causa.

A DESPENALIZAÇÃO do aborto é que acho que deveria ser uma decisão das mulheres: não é decidir se devem ou não abortar, mas decidir se tal deve ou não ser permitido por lei.
Se fosse permitido, estaria nas mãos de cada um decidir se o quer fazer, de acordo com os seus valores – o aborto é para mim uma questão de princípios.

Em última análise, se houvesse democracia a sério neste país, nem devia haver referendo (parece um contra-senso mas não é). O aborto devia ser legal e quem quisesse fazê-lo devia poder recorrer a ele. Actualmente, nem sequer é dada às mulheres essa opção. Não há liberdade de escolha. Não há democracia.

Némesis

4:45 da manhã  
Anonymous Anónimo disse...

Vou assinar este postcom AN.2, para distinguir do outro anónimo.
Deixem-me fazer o ponto da situação neste debate acalorado.
Para Prometeu e anónimo1, não é defensável matar o feto, o 1º alega o FCON e o 2º, pelo respeito pela vida humana. Para Némesis, feto não chega a ter vida, portanto, não se distingue do frango da churrasqueira (sic!. Prometeu admite excepções, como mal formação congénita e anacéfalia ( anacéfalia, que diabo é? Quer dizer, por certo, acéfalia )
Cncordo, genericamente, com o Prometeu e o anónimo 1. Discordo totalmente de Némesis pelas razões seguintes: i.o feto é um ser vivo, pois começa a existir com a fecundação. Entre um feto, uma criança e um adulto, há uma diferença de grau de desenvolvimento, não há um diferença de essência, pois eles são "seres" ( ESSÊcia é da família de SER). O feto e o frango, para além do mau gosto da associação, é um absurdo, pois um é SER humano , tem ESSÊcia humana, o frango não é um SER humano. Quanto ao dilema feto ou mãe, é um falso dilema. Não são casos comparáveia, pois ao feto tira-se a vida, à mãe não está em causa a sua vida, estão em causa os seus projectos ( bem-estar, liberdade, menos responsabilidades de educação, menos preocupações etc). Privar a vida física ao feto e privar a vida social à mulher há uma distância de quilómetros.
Decorrente do exposto, há o problema da despenalização. Admitido que o feto é um ser vivo, como ficou provado, tirar a vida ao feto é um crime, só difere do tirar a vida a uma criaça ou a um adulto, porque há maior carga emocional, nestes dois últimos casos. a ausência desta carga emocional seria uma atenuante, como atenuantes seriam as condições económicas, a inexperiência da jovem etc, mas ATENUAÇÃO não é ABSOLVIÇÃO, pois estamos a falar de um acto punível. AN 2.

7:58 da tarde  
Anonymous Anónimo disse...

Dois erros se escaparam no post anterior. Em vez de anacéfalia e acéfalia leia-se anacefalia e acefalia Desculpem. An 2

8:52 da manhã  

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