sábado, abril 09, 2005

A modéstia

Tal como tinha prometido há já bastante tempo, aqui vai um post sobre a modéstia, com as devidas desculpas a quem por ele tanto tempo esperou.

Ponto de partida, e que será, ao mesmo tempo, a premissa de conclusão, aquilo a que irei chegar quando terminar o meu (muito) simples raciocínio: a modéstia foi, é e será sempre um defeito de origem social, do qual nos devemos livrar quanto antes. A pergunta lógica que segue é: "porquê?".

Senão, vejamos. A modéstia é muito simplesmente o acto de rebaixar as nossas faculdades subjectivamente por nós consideradas como tais quando em conversa com outra(s) pessoa(s). A modéstia parte do princípio que nós sabemos exactamente quais são as nossas capacidades e que mintamos sobre elas, que enganemos o nosso interlocutor. Não sei quanto a vós, mas eu desprezo e abomino a mentira em todas as suas formas. Porém, por muito esquisito que possa parecer (e daí, talvez não), esta forma de mentira é não só permitida como também encorajada pela sociedade (mais uma prova da decadência do tecido social actual). De novo, a pergunta "porquê?". Pelo que me é dado a ver, a resposta parece simples: numa sociedade claramente abaixo da média (perdoem-me o contra-senso; o que eu quero que se leia é "média desejada") e com sub-aproveitamento (como o "analfabrutismo", como eu gosto de lhe chamar), a melhor forma de impedir que o ego (num sentido aqui muito freudiano) de cada um, e, por conseguinte, da totalidade, saia magoado é fazer com que a outra pessoa se repise a si mesma. Não havendo, por obra e graça da santa modéstia, ninguém que admita que se destaca (no que quer que seja), todos ficam contentes e pensam que somos "todos iguais", esquecendo-se da parte do "todos diferentes" - quer isto dizer que é mais confortável para os amantes da modéstia pensar, mesmo que inconscientemente, que somos todos uma massa amorfa com as mesmas características. Ao mesmo tempo, e caindo nas inevitáveis contradições em que sempre se cai quando se é ilógico, os mesmos promotores da modéstia passam à admiração/veneração de outras pessoas. Mas agora (pasme-se), acontece o mais divertido: imaginando, por momentos, que a pessoa A admira a pessoa B e que a pessoa B concorda com os elogios tecidos por A, B passa automaticamente a ser presunçoso ou convencido aos olhos de A, meramente por ter concordado com A. Estranho, não é? Também acho. O que daqui se releva é o seguinte: admitimos a admiração quando reside em nós e apenas em nós o poder de a atribuir e quando a pessoa alvo da admiração está longe (porque se cria uma distanciação psicológica que permite ver a pessoa como "além" ou "acima" (e.g.: aqueles inúteis, vulgo jogadores de futebol, que são adorados por multidões), ou quando a pessoa entra no contrato sub-reptício de negar a admiração, mesmo sabendo-a verdadeira.

Chegando a este ponto da minha argumentação, frequentemente me deparo com a ridícula afirmação: "mas então defendes que as pessoas sejam presunçosas", como se entre a modéstia e a presunção existisse uma clara linha divisória e apenas a possibilidade de escolha entre uma ou outra coisa. Puro erro, de origem bem conhecida: a sociedade formata-nos de tal maneira que nos retira a capacidade de ver claramente um continuum. O que se defende, então, é a mais pura e simples coisa deste mundo: a honestidade e a franqueza. Que funciona para ambos os lados. Exemplo muito prático: estou agora a ter lições de guitarra clássica, e tenho algumas dificuldades em coordenar os movimentos. Pronto, simples, não é? Se eu estiver com um verdadeiro virtuoso nato, espero que ele me diga "estou agora a ter lições de guitarra clássica, e é-me facílimo aprender novos exercícios e novas músicas, domino tudo aquilo com extrema facilidade, de tal forma que quase se torna aborrecido". E isto difere grandemente de "eu sou um grande guitarrista e como eu não há melhor de certeza, faço aquilo melhor que toda a gente". Será que a diferença não é óbvia?

Deixemos portanto de mentir a nós mesmos e aos outros, aceitemos as diferenças entre nós e partamos dessas mesmas diferenças para fazer um mundo melhor, um mundo mais autêntico, em que a coerção social seja cada vez menor, até chegar ao mínimo possível, seja ele qual for. Em suma, é-nos impossível ser defensores da verdade e da modéstia ao mesmo tempo, se quisermos ser coerentes. Porque ser modesto é mentir, é ser um escravo das convenções e da menoridade intelectual da maioria e dos seus complexos de inferioridade intermináveis.

Acho que em Portugal há um julgamento estranho da modéstia. Batem-se palmas a quem basicamente diz que não é muito bom a fazer o que faz. E quando alguém diz que tem confiança no que faz, utiliza-se uma palavra pejorativa: arrogante. Eu claramente tenho confiança no que faço, e nesse aspecto não sou modesto.
- Gonçalo M. Tavares in Mil Folhas, Público


Prometeu

5 Comentários:

Blogger Pedro Santos Cardoso disse...

Embora a modéstia possa provir de uma falta de percepção das nossas próprias qualidades - e aqui, a pessoa que seja modesta está a ser verdadeira (ou pensa que o está, por falta de consciência do seu erro), as mais das vezes a modéstia é mesmo uma estratégia subconsciente de marketing para conquistar a simpatia dos outros, provocando neles um sentimento de segurança.

11:25 da manhã  
Blogger Daniel Cardoso disse...

Não querendo ser implicante, se a pessoa está a ser verdadeira, não está a ser modesta no verdadeiro sentido da palavra: parecerá apenas aos interlocutores que assim é. De resto, concordo plenamente, como se nota no post.

Prometeu

12:00 da tarde  
Anonymous Anónimo disse...

Os filhotes de Rousseau são deliciosos! Abaixo a modéstia! Viva a verdade!
(Psst! Mas quem é capaz de viver sem o alento das pequenas mentiras?...)

2:49 da manhã  
Blogger Daniel Cardoso disse...

Não deverá a humanidade tentar libertar-se das suas mentiras tanto quanto possível? E quem sabe até onde isso nos levará. Pessoalmente, as pequenas mentiras nunca me deram alento, muito pelo contrário. Até porque nem sempre a esperança é a última a morrer.

Prometeu

11:23 da manhã  
Blogger Domë Earendil disse...

Como vim a aprender por ti, há bem pouco tempo, A sociedade está muito habituada a viver através de extremos "virtuais" (chamemos-lhes assim..)..Estes extremos não são mais que um pequeno desvio ao chamado "meio termo", isto é, quando se fala no Bloco de Esquerda (tomando o teu exemplo e permitindo-me complementar e explicar, se possível o teu raciocínio), diz-se que são autênticos radicais da esquerda, quando mal estão desviados do centro...Ora, trocando isto por miúdos (tirando toda a malícia da expressão..=P), a modéstia será o "meio termo" entre a presunção e a ausência de auto-confiança (desculpem se me enganei...). Ora, nesta sociedade anti-social por vários motivos, qualquer pessoa "B" que fuja ao objectivo da pessoa "A", que será o de elevar o ego da última, rebaixando o da primeira, mesmo que a pessoa "B" esteja a ser sincera e disser que é realmente boa em certa coisa (o que se chama modéstia verdadeira, estando apenas a concordar com o elogio bi-intencional de "A", o que a situará no "meio termo") estará a ser presunçosa e convencida.

Permiti-me a pseudo-conclusão que teria muito mais para escrever, mas, sinceramente, não tenho (ou talvez tenha, mas desconheço) inteligência suficiente para desenvolver.

Sem mais assunto e com o meu aplauso e o chapéu tirado a este post:

Night Elf

3:46 da tarde  

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