Tal como tinha prometido há já bastante tempo, aqui vai um
post sobre a modéstia, com as devidas desculpas a quem por ele tanto tempo esperou.
Ponto de partida, e que será, ao mesmo tempo, a premissa de conclusão, aquilo a que irei chegar quando terminar o meu (muito) simples raciocínio:
a modéstia foi, é e será sempre um defeito de origem social, do qual nos devemos livrar quanto antes. A pergunta lógica que segue é: "porquê?".
Senão, vejamos. A modéstia é muito simplesmente o acto de rebaixar as nossas faculdades subjectivamente por nós consideradas como tais quando em conversa com outra(s) pessoa(s). A modéstia parte do princípio que nós sabemos exactamente quais são as nossas capacidades e que
mintamos sobre elas, que enganemos o nosso interlocutor. Não sei quanto a vós, mas eu desprezo e abomino a mentira em todas as suas formas. Porém, por muito esquisito que possa parecer (e daí, talvez não), esta forma de mentira é não só permitida como também encorajada pela sociedade (mais uma prova da decadência do tecido social actual). De novo, a pergunta "porquê?". Pelo que me é dado a ver, a resposta parece simples: numa sociedade claramente abaixo da média (perdoem-me o contra-senso; o que eu quero que se leia é "média desejada") e com sub-aproveitamento (como o "analfabrutismo", como eu gosto de lhe chamar), a melhor forma de impedir que o ego (num sentido aqui muito freudiano) de cada um, e, por conseguinte, da totalidade, saia magoado é fazer com que a outra pessoa se repise a si mesma. Não havendo, por obra e graça da santa modéstia, ninguém que admita que se destaca (no que quer que seja), todos ficam contentes e pensam que somos "todos iguais", esquecendo-se da parte do "todos diferentes" - quer isto dizer que é mais confortável para os amantes da modéstia pensar, mesmo que inconscientemente, que somos todos uma massa amorfa com as mesmas características. Ao mesmo tempo, e caindo nas inevitáveis contradições em que sempre se cai quando se é ilógico, os mesmos promotores da modéstia passam à admiração/veneração de outras pessoas. Mas agora (pasme-se), acontece o mais divertido: imaginando, por momentos, que a pessoa A admira a pessoa B e que a pessoa B concorda com os elogios tecidos por A, B passa automaticamente a ser presunçoso ou convencido aos olhos de A, meramente por ter concordado com A. Estranho, não é? Também acho. O que daqui se releva é o seguinte: admitimos a admiração quando reside em nós e apenas em nós o poder de a atribuir
e quando a pessoa alvo da admiração está longe (porque se cria uma distanciação psicológica que permite ver a pessoa como "além" ou "acima" (e.g.: aqueles inúteis, vulgo jogadores de futebol, que são adorados por multidões), ou quando a pessoa entra no contrato sub-reptício de negar a admiração, mesmo sabendo-a verdadeira.
Chegando a este ponto da minha argumentação, frequentemente me deparo com a ridícula afirmação: "mas então defendes que as pessoas sejam presunçosas", como se entre a modéstia e a presunção existisse uma clara linha divisória e apenas a possibilidade de escolha entre uma ou outra coisa. Puro erro, de origem bem conhecida: a sociedade formata-nos de tal maneira que nos retira a capacidade de ver claramente um
continuum. O que se defende, então, é a mais pura e simples coisa deste mundo: a honestidade e a franqueza. Que funciona para ambos os lados. Exemplo muito prático: estou agora a ter lições de guitarra clássica, e tenho algumas dificuldades em coordenar os movimentos. Pronto, simples, não é? Se eu estiver com um verdadeiro virtuoso nato, espero que ele me diga "estou agora a ter lições de guitarra clássica, e é-me facílimo aprender novos exercícios e novas músicas, domino tudo aquilo com extrema facilidade, de tal forma que quase se torna aborrecido". E isto difere grandemente de "eu sou um grande guitarrista e como eu não há melhor de certeza, faço aquilo melhor que toda a gente". Será que a diferença não é óbvia?
Deixemos portanto de mentir a nós mesmos e aos outros, aceitemos as diferenças entre nós e partamos dessas mesmas diferenças para fazer um mundo melhor, um mundo mais autêntico, em que a coerção social seja cada vez menor, até chegar ao mínimo possível, seja ele qual for. Em suma, é-nos impossível ser defensores da verdade e da modéstia ao mesmo tempo, se quisermos ser coerentes.
Porque ser modesto é mentir, é ser um escravo das convenções e da menoridade intelectual da maioria e dos seus complexos de inferioridade intermináveis.Acho que em Portugal há um julgamento estranho da modéstia. Batem-se palmas a quem basicamente diz que não é muito bom a fazer o que faz. E quando alguém diz que tem confiança no que faz, utiliza-se uma palavra pejorativa: arrogante. Eu claramente tenho confiança no que faço, e nesse aspecto não sou modesto.
- Gonçalo M. Tavares in Mil Folhas, Público
Prometeu